merculino e a tragédia do pénis descalço

merculino e a tragédia do pénis descalço

não-dramatis ex-personae: merculino, morte, sono, sonho, pesadelo, medo

(Levantamento de panos. Sonho encontra-se do lado esquerdo. Pesadelo encontra-se do lado direito. Estão sentados e presos a uma corrente cada um que se estende até ao meio da cena. Ao lado de cada um está um jarro e uma caneca.)

pesadelo
E nisto cai num abismo sem fundo.

(Silêncio.)

sonho
(Pensa.)
Aterrando suavemente sobre cintilantes plumas vermelhas.

pesadelo
(Espanto.)
Impossível. É um abismo sem fundo. Não se aterra.
(Reitera.)
Sem… fundo…

sonho
Ora… Então…
(Pensa.)
Cai no abismo sem fundo abraçado a tudo o que mais amou em vida. Entre os cânticos de pintassilgos em chamas e…

pesadelo
Continua a ser um abismo sem fundo. Continua a ser eterno. E a eternidade sou eu. O pesadelo.
(Reitera.)
Uma eternidade que não seja pesadelo não existe.

sonho
(Pensa.)
Bem… Dessa não há escape. Não há sonho que resista.

pesadelo
Bem o sabes meu irmão.

sonho
Isso faz-me lembrar de uma maravilhosa viagem em que embrenhei o merculino.
(Silêncio.)
A ginecologia da moral. Belíssimo.

pesadelo
Lembro-me perfeitamente.

sonho
Dessa vez também me interrompeste com essa tua obsessão pela eternidade.
(Silêncio.)
As vaginas sem fundo.

pesadelo
Penetrar as entranhas rumo ao vazio. Foi fácil desviar o curso das tuas águas. Difícil, minimamente difícil, foi mudar o leito das tuas danças ao sabor do trombone. Quando todas aquelas criaturas coloridas rasgavam sorrisos a cada movimento do corpo líquido ao som daquele sopro. Poderia ter um final belo acaso o tivesse. Ainda te lembras dessa minha conquista?

sonho
Plenamente. A trombose dançante.
(Silêncio.)
Só de lembrar me percorrem arrepios de alto a baixo.

pesadelo
Magistral caro irmão.
(Reitera.)
Foi magistral.

sonho
Sem dúvida. Mas muitas foram as viagens onde te prostraste à magnitude da maravilha sonhada. Como me lembro da tua expressão atónita quando naveguei o merculino na algália. Um mar cheio de algas. Como ficaste apático enquanto ele remava com palitos em cima de uma rodela de chouriço numa imensidão de caldo verde. Nas margens que lhe arredondavam a visão estavam as danças faiscantes dos pintassilgos em chamas. Épico.

pesadelo
De facto. Foi grande impotência a minha. Como se ficasse estarrecido perante o inominável.
(Silêncio.)
Mas na tua viagem seguinte, aquela sobre as coincidências, que derivaste para as incidências no cu, novamente te desviei o curso líquido.

sonho
Novamente a repulsa. O eterno.
(Silêncio.)
Um ânus sem fundo. As tuas repetições vão saturando. Continuo sem conceber como podes continuar ilibado dessa contínua forma de legitimação através da multiplicação do mesmo. É apenas um beco sem saída. Nada mais.

pesadelo
Digo-te ainda meu irmão. Muito mais eternidades poderiam ter corroído a mente do merculino. Guardei-as. E até te direi algumas porque não as irei utilizar em breve. Faltam-lhes alguns requintes para as considerar finalizadas e prontas para a embarcação. Ficarão em terra consciente por mais algum tempo, senão para sempre. Um naufrágio seco.
(Enumera.)
O átomo constipado.
(Reitera.)
Eternamente constipado.
(Silêncio.)
Cabalística enquanto balística do lado de cá.
(Reitera.)
Eternamente ser baleado. Uma acumulação de dor sem falecimento.

(Barulhos metálicos.)

sonho
Alguém vem lá.

pesadelo
O som do inesperado.

(Entra o sono carregando merculino num veículo. Merculino está acorrentado e permanece sempre de pálpebras fechadas, em silêncio e estático. Apenas reage fisicamente às viagens do sonho e do pesadelo.)

sonho
Já por esta doca sono?

sono
Sim. Mas hoje é diferente.

pesadelo
Bem o vejo. É cedo.
(Reitera.)
Demasiado cedo.

sono
(Prende o veículo de merculino às correntes soltas. Merculino fica acorrentado ao sonho e ao pesadelo.)
Temo que a morte se possa apoderar dele muito em breve. O momento que culminará este ser pode estar próximo. A sua materialidade ressente-se. A fadiga transborda-lhe em excesso. O ritmo ora está ora não.

sonho
Mas…
(Espanto.)
Como?

sono
A vida esfacela-se. Um acidente. E eis que os ossos lhe furam os órgãos.

pesadelo
Mas…
(Espanto.)
Tende mais para ti ou para a tua irmã?

sono
Diria que por agora a balança se equilibra. Dei-lhe a paz possível quando já bramia as dores para o universo. Quando a exaustão já estava cansada de o fulminar. Eis-me nele. Por enquanto. E hoje a vigília não o visitou. Resta-me derramar-lhe novamente a serenidade sobre os olhos.
(Pinta-lhe as pálpebras de negro.)

sonho
Tudo farei para que para ti tenda. E para que a visita da morte seja adiada. Irei revirarar-lhe as sinapses em universos fosforescentes para que ela o não encontre.

sono
Assim seja sonho.
(Silêncio.)
Urge iniciarem. E dita o seu inconsciente que o primeiro momento para ti seja pesadelo. Começarás a navegar-lhe nas entranhas extenuadas.

pesadelo
Prestarei todo o meu esforço na concentração das dores. Abrirei os caminhos para a morte. Para que se o quiser hoje o tenha. Noutras fases me dissipei das tuas jornadas ilustre sono. Me abstive de estar presente.
(Reitera.)
Quase sempre. Mas eis-me inteiramente ao teu serviço.

sonho
Bem sei das tuas ausências irmão. Muitos louvores que colhi não te tiveram por inimigo. E permanentemente desejei a ausência da batalha. Pois as tuas armas em muito me atemorizam.
(Silêncio.)
As frotas de negrume que emanas tantas vezes diluíram a minha cor. Fui arco-íris para a cegueira. Agora te deixo na preparação do duelo solitário. Invocarei todas as minhas forças para que seguidamente te dissipe. Te anule. Pois o meu espólio tende para o infinito. Sem repetição.

pesadelo
Pois excederei em muito os esforços que já fiz por este ser. Irei ribombar no seu cérebro com a tenacidade do raio fulgurante. Escurecerei cada recanto da sua mente para a fulminar com a luz da verdade mórbida. Revolverei as águas serenas em que tu, sono, o tens, em busca dos abismos vertiginosos que o levem à inexistência.

(Entra o medo. Senta-se por trás de merculino numa cadeira muito alta. Pega num tambor e produz uma pancada seca.)

sono
Todas as presenças já se manifestaram. Comecemos então a hermenâutica.
(Aproxima-se de pesadelo.)
Por intermédio do licor do espírito te invoco para a viagem inconsciente.
(Pega no jarro e enche a caneca.)
Que a imaginação te escorra em incandescência.
(Ergue a taça.)
Penetra-o sem limites.
(Dá-lhe a taça. Pesadelo bebe lentamente enquanto respira fundo. A cada trago medo produz uma batida seca de tambor.)

pesadelo
(Em transe.)
Um pénis descalço vagueia dentro de corredores homogéneos. Está num sétimo andar de um edifício abandonado. Numa cidade abandonada. E apenas o sente. Não o sabe. Embora veja as paredes luminescentes pouco mais existe que betão. Assim se emociona. Percorre corredores atravessados por outros corredores sem nada mais discernir. Pensa estar no eterno.

medo
O eterno retorno.
(Batida seca de tambor.)
Ao mesmo.
(Três batidas seca de tambor.)

pesadelo
O pénis descalço pensa no que procura. O diferente. Vislumbra escadas onde a luz é ondulada. Desce-as. Nesse andar o mesmo. Mas encontra o diferente no seu ritmo cardíaco que acelera. E pouco sabe de si. Nada sabe do que está do lado de fora. Clama pelo espaço aberto. Uma e outra vez.

medo
(Bramido.)
Espaço aberto?
(Batida seca de tambor.)
Nada.
(Batida seca de tambor.)
Nada.
(Batida seca de tambor.)
Nada.
(Batida seca de tambor.)

pesadelo
Vislumbra o diferente externo a um instante. Uma loja cheia de cores. Pequena. O pénis descalço entende então que a luminescência das paredes não o deixavam ver aquilo que as paredes eram. Lojas. Desertas todas ela. Excepto aquela. Porque a vitrina não era uma verticalidade cheia de nada. Apressa-se à loja colorida. Lá dentro senta-se na única mesa que existe. O espaço está quase vazio. Apenas as cores o decoram com panos e luzes. Nada mais. Por trás dos panos surge o movimento. O dono da loja ao que pensa. Sai perguntando se deseja algo em concreto ou se está ali apenas por uma vaga generalidade. O pénis descalço faz menção de dizer que está apenas de passagem. É uma reviravolta intensa para a sua serenidade. Encontra uma estranha paz como raramente tinha sentido. Fica a saber que o lojista se chama oráculo anal. Mantém o negócio escondido dos olhares medíocres para melhor servir os esclarecidos do espírito. Mostra-lhe algumas fotografias dos seres que pretende vender. Em uma e outra fotografia apenas ânus. Um mais raiado que outro. Outro mais comprimido pelas nádegas que outro. Alguns sarapintados de sardas enquanto uns pareciam uma brancura plena de polpas arrebitadas. Uns e outros sorriam abertamente. Alguns ligeiramente. Mas todos sorriam como se uma serenidade precoce lhes tivesse penetrado o âmago. O pénis descalço devolve as fotografias. Não se entesaria tão facilmente. E nem dificilmente. Ainda pergunta por quanto tempo não apareceriam clientes alguns na loja. O oráculo anal diz-lhe que passava mais tempo sem aparecer um cliente do que a vida inteira do pénis descalço. E logo em seguida lhe enumera os enigmas dos oráculos da saída daqueles corredores e andares. Não lhe explica contudo a saída do abandono. Antes lhe diz que o abandono é tudo o que há.

medo
O deserto do real.
(Batida seca de tambor.)
Ao mesmo.
(Três batidas seca de tambor.)

pesadelo
O pénis descalço consegue decifrar a saída dos corredores e dos andares. Está agora numa rua ladeada por edifícios todos iguais. Pénis calçados andam a direito pela rua sempre no mesmo ritmo. Em lógica absoluta. Nenhum nota a sua existência. E porque haveria? Apenas seguem rectas perfeitas até que mudam de direcção em ângulos de noventa graus. Estão vivos?
(Silêncio.)
Interpela muitos deles. Ignoram-no. Pensa melhor. Percebe melhor. Não o ignoram. Ele apenas não existe. E contudo as lágrimas embatem fortes no asfalto enquanto corre em direcções aleatórias. Sente-se murchar mais e mais. Procura-se. Mas não está em lugar algum. Sai da rua e encontra outra rua igual. Sai daquela cidade e encontra outra cidade igual. A latência do medo fulmina-o. É essa a única diferença.

medo
O eterno retorno ao deserto do real.
(Batida seca de tambor.)
Ao mesmo.
(Três batidas seca de tambor.)

(Silêncio. Pesadelo deixa cair os braços sobre as pernas em exaustão.)

pesadelo
A exaustão trespassa-me.

sono
(Lava o rosto de merculino. Enxuga-o. Pinta-lhe as pálpebras de branco.)
Continuemos a hermenâutica.
(Aproxima-se de sonho.)
Por intermédio do licor do espírito te invoco para a viagem inconsciente.
(Pega no jarro e enche a caneca.)
Que a imaginação te escorra em incandescência.
(Ergue a taça.)
Penetra-o sem limites.
(Dá-lhe a taça. Sonho bebe lentamente enquanto respira fundo.)

sonho
(Em transe.)
O pénis descalço vagueia nos areais. Tenta contornar o sol para lhe vislumbrar uma fenda. O sol está forte e redondo incrustado no azul. As areias tremem-lhe nos testículos a temperaturas amenas. Ele vai só. E sonhador. Ouve as águas agitarem-se perante a sua presença. Pensa finalmente ter contornado todo o sol e então imagina ver a fenda da sua glória. Pausa erecto. Tumefacto. A espuma banha-se nas areias sem tremer. Ele sente o sangue a humidificar mais. E mais ainda. Cresce em si a quantidade sanguínea. E o fluxo intensifica-se. Pensa serem os antepassados a erguerem-se com ele. Por ele. Poderosos no seu orgulho. Na sua descendência que ascende. O pénis descalço sente então uma gota de suor que não é sua. Mas também não é salgada. Lambe a glande. Obstinadamente vai lambendo a glande enquanto o sol começa a cair. Lento. Duvida se está a cair ou simplesmente a aumentar de tamanho no reflexo de um espelho. Aumenta? Cai?
(Silêncio.)
Lambe-se em compulsão sabendo que o desejo que corre nos testículos se prostra para a conclusão. No término da luz. Mas afinal o sol não aumentava o tamanho. Simplesmente caia. Sobre si. Como uma pluma dourada tocada pela brisa marítima. Nisto, entre ele e o sol passa em voo fulgurante um pintassilgo em chamas. O pénis descalço exclama sem falar. Gesticula sem braços. Vê-se abrasar. E em voo rasante. Não fala mas contudo aumenta a sensação auditiva enquanto as águas turbilhavam. Cada vez mais perto. Emociona-se com a génese a florescer. Sente-se uma lua que a qualquer momento sai de dentro de si mesmo rasgando velozmente os céus. Do negro ao azul e novamente ao negro. Atravessando a erectoesfera. O infinito. O calor aumenta enquanto o sol se abate mais e mais sobre si. Observa a fenda solar a dilatar e a contorcer-se. Faz escorrer sobre si um turbilhão de fluídos. Gotas de suores que não eram salgados. Lambe novamente a glande. Como um furacão tenta atingir os céus sem sair do sítio. Rodopia sobre o seu eixo. E sente o vento de si mesmo a levar e a trazer os suores. O sol cai então sobre o pénis descalço. Completamente. E ele sente-se penetrar nas vísceras húmidas da deificação. Ele é deus.

(Silêncio.)

medo
Nisto o negro.
(Batida seca de tambor.)
A erectofagia solar.
(Três batidas seca de tambor.)
A morte.
(Silêncio.)

(Entra a morte. Sonho deixa cair os braços sobre as pernas em exaustão.)

sonho
A exaustão trespassou-me.

morte
Estes domínios chamam-me como o alvoroço das gaivotas assustadas pelo raio. Serei a voz da resposta a uma última paz que abranda a batalha solitária. Até uma extinção. Como o sopro seco e sensível apaga a vela para que as trevas se deleitem no absoluto.
(Coloca um saco negro em cima da cabeça de merculino. Com uma faca faz um pequeno golpe. Líquido vermelho escorre do saco negro pelo corpo de merculino.)
Peço-te que partas sono, meu irmão. A tua estadia atingiu o término. É uma lisonja absorver a dignidade imaculada da tua nuvem. Dissipa-se nos céus para não não mais se formar. Não obstante é bela. Embora já não consigas chover. Nem fazer sombra aos raios cintilantes do sol negro. O medo clamou-me bem alto. E o sonho não conseguiu esconder esse bramido entre as suas melodias cintilantes.

sono
Sapiente irmã, confio este ser aos teus cuidados. Dissipo-me como a neblina de uma manhã extenuada.
(Beija a mão da morte e sai.)

morte
Louvável sonho, esplendor guerreiro das cores pluriformes, melodia suave da transmutação da existência, louvo-te as façanhas. E que esta derrota nunca te faça menosprezar a potência das tuas virilidades. Pois é chegado o tempo de partires. O medo tomará o teu lugar. A nossa trindade irá encarregar-se de finalizar o esfacelamento da vida.

sonho
Poderosa morte, confio este ser à presença ribombante do medo.
(Retira as correntes do seu corpo. Beija a mão da morte e sai. Medo ocupa o seu lugar.)

morte
(Pinta todo o corpo de merculino de negro.)
Incansável pesadelo, desejo que as forças novamente te ericem as viagens. É sempre o excesso que exponencia a inexistência. Peço-te a última viagem. Para o vazio. O esforço derradeiro que se encarrega de mover a vida para o abismo da serenidade absoluta.

pesadelo
A força revigora-se com a tua imponente presença. Mais se multiplica quando o medo me assiste tão perto no derradeiro elo.
(Reitera.)
O último expoente.

morte
Finalizemos a hermenâutica.
(Aproxima-se de pesadelo.)
Por intermédio do licor do espírito te invoco para a última viagem do inconsciente.
(Pega no jarro e enche a caneca.)
Que a imaginação te escorra em incandescência.
(Ergue a taça.)
Penetra-o sem limites.
(Dá-lhe a taça. Pesadelo bebe lentamente enquanto respira fundo.)
E a ti meu guerreiro insondável.
(Aproxima-se de medo.)
Por intermédio do licor do espírito te transmuto em terror.
(Pega no jarro e enche a caneca.)
Que engulas a existência através dos teus laivos.
(Ergue a taça.)
Penetra-o sem limites.
(Dá-lhe a taça. Medo bebe sofregamente.)

pesadelo
(Em transe.)
O pénis descalço vagueia na ponte. Parece-lhe que desde sempre que a percorre. Nada muda. Nada aparece. Testículo ante testículo tenta ir mais adiante. Mais à frente. Mais longe. Mas enquanto se move o sítio permanece. Por baixo da ponte vislumbra um nevoeiro denso. Estático. Assemelha-se ao nevoeiro da eternidade. Então sente gotas frias a descenderem e a ascenderem sobre si. Como uma masturbação exteriormente líquida. Onde a libido rompe para o estarrecimento. Fica tumefacto. Numa introspecção de nenhures.

medo
(Duas batidas secas de tambor.)
Nada.

pesadelo
Recheado de vazio.

medo
(Duas batidas secas de tambor.)
Nada.

pesadelo
Apenas a ansiedade.

medo
(Duas batidas secas de tambor.)
Nada.

pesadelo
Uma ansiedade que pulsa o sangue para as suas guelras. Vê surgir lábio ante lábio uma vagina descalça. Vem esguia e determinada. O clitóris parece inspeccioná-lo nas entranhas do ser. E do ter. Mas só parece. O pénis descalço ousa pensar que o nevoeiro ascenderia para o esconder. Para o encobrir do medo. Limita-se a continuar tumefacto na inexistência do nevoeiro à sua volta.

medo
(Duas batidas secas de tambor.)
Nada.

pesadelo
A vulva descalça circunda-o. Observa-o atentamente de alto a baixo. Como se o masturbasse com visões. Atenta ao mínimo movimento que ousasse existir. Uma autoridade do silêncio onde apenas os cheiros se libertam fulgurantes rumo aos céus em rodopios bailados. O pénis descalço inala sem se emocionar. Imagina controlar a pulsão sanguínea com a vacuidade da sua consciência atemorizada. Sabe que não consegue esconder o terror.

medo
(Batida seca de tambor.)
Nada.

pesadelo
A vulva descalça inebria-se com o odor a terror e dança sem sorrir. Pois o propósito é outro. Retira de dentro de si mesma uma enorme pedra. Pousa-a. Retira também uma corda que parece não ter fim. As suas entranhas seriam infinitas?
(Silêncio.)
O pénis descalço sua mais. Sente os testículos latejarem em crescente pânico.

medo
Pânico.
(Batida seca de tambor.)
Pânico.
(Batida seca de tambor.)
Pânico.
(Batida seca de tambor.)
Pânico.
(Grito.)
Pânico.
(Três batidas seca de tambor.)

pesadelo
A vulva descalça amarra uma ponta da corta aos testículos do pénis descalço. Fazendo com eles uma massa disforme aparentemente pronta a rebentar. Era uma amálgama de restos de vida que partilha em comum o laço afectivo da corda. A latência asfixia no nó e não sai. Implode.

medo
Implosão.
(Batida seca de tambor.)
Implosão.
(Batida seca de tambor.)
Implosão.
(Batida seca de tambor.)
Implosão.
(Grito.)
Implosão.
(Três batidas secas de tambor.)

pesadelo
A vulva descalça amarra a outra ponta à pedra. Pega nela com a subtileza de um nenúfar em chamas. Olha uma última vez para o pénis descalço. Atira a pedra da ponte. Rumo aos nevoeiros.
(Deixa cair os braços sobre as pernas em exaustão.)

medo
O tempo escorre em cascata.
(Grito.)
Secou.

sonho
A exaustão trespassou-me.

(Pesadelo e medo retiram as correntes dos seus corpos e saem. A morte retira as correntes do veículo.)

morte
(Dança em volta de merculino em transe.)
Em cima da ponte soltas o último grito estridente. Um nenúfar em chamas rasga os céus. Bem-vindo meu filho. Como te amo.

(Caimento de panos.)

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